sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Chuva e seca


Depois da chuva,
Vamos passear,
Pisando nas poças d’água
E na lama das ruas.
As folhas abandonarão pesadas
Que cairão sobre nossas cabeças
Limpando nossos velhos pensamentos.

Andaremos pelo chão árido e rachado
Do sertão durante a seca,
Procurando poças d’água
Nos açudes enlameados.
Não haverá folhas
E o sol estará cobre nossas cabeças
Atormentando nossos velhos pensamentos.

Depois do perdão,
Vamos passear
Por águas límpidas
E por ruas sem lama.
Seremos coroados com folhas cheirosas
E a luz estará sobre nossas cabeças,
Iluminando nossos velhos pensamentos.

Andaremos no chão árido e rachado
Do coração durante a condenação
Procurando água limpa
Para nos livrar da lama.
Seremos coroados com espinhos
E a dor estará sobre nossas cabeças
Condenando nossos velhos pensamentos.

quinta-feira, 29 de novembro de 2007


Quando percebi
ainda era sombra
sob meus passos,
sobre minha cabeça.
Morto estava, morto fiquei.

Quando vi
era luz forte
cegando, orientando,
pedindo, chamando.
Morto estava, mas nasci.

Quando toquei
era mais que carne
afagando, pensando,
me embriagando.
Nem morto estava, mas revivi.

Quando possui
era tudo e mais que isso.
Era eu e era ela.
Era o mundo que se fazia.
Vivo já estava, me fortaleci.

Quando cansei
era sono profundo,
depois do afago, do gozo,
da mulher que ama-amada.
Outro já era, adormeci.

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Dias de carne


Culpa. É isto o que sente. Ao sorver, gole a gole, a última taça do seu champanha tem os olhos, arrependidos e saudosos, nos dias de carne. Agora não. Agora só o maldito champanha é carne, só ele queima-lhe o estômago. O champanha e ela, viva cada dia, revivida cada hora a queimar por dentro o que sobrava de um homem. O resto era espírito, Padre Nosso e Ave Maria, Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, como era no princípio, agora e sempre, amém.
Maria. Maria de rosto angélico, carne tenra e corpo de inferno. A ele entregou-se Maria, volúpia e dor. Manchou o lençol do leito conjugal com o sangue de Maria. Culpa. É isto que sente. Mas, agora, não é mais carne.
E Maria concebeu. Anunciou: “eis que carrego no ventre teu filho”. Maria nunca disse ventre, diria bucho. Mas, concebeu. E concebeu por tê-lo seduzido, por tê-lo obrigado a pecar. Veio Gabriel e foi-se Rute. Rute, na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, na riqueza e na pobreza, odeia-o. Culpa. É isto o que sente. Não agora que espera o Reino. Agora, não é mais carne, salvo o champanha que lhe incomoda as úlceras.
Outro gole. Não. Não, ela não pode... pega o terço. Larga o terço. Liga o aparelho, põe o disco, seleciona a música: “Fim da estrada”, Madredeus. É ela. Viva. Gabriel virou anjo aos oito meses. Desespero de mãe, Maria xinga, blasfema, volt ao leito que violara, grita, copula. Culpa. É isto o que sente. E... só.
Lamenta. Vai ao quarto. Beija o corpo de Maria, arranca-lhe a roupa, assume sua posição de macho. Crava as unhas no pescoço da mulher, impede-a de respirar. Não pára de ser macho. Urra, cão no cio, enquanto ela se deixa de se movimentar. Dorme ao lado do corpo, sem culpa. Mas, isto foi no tempo de carne... hoje é espírito, Padre nosso e Ave Maria, Glória ao Pai, ao Filho e Ao Espírito Santo, como era no princípio, agora e sempre, amém. É espírito, salvo o champanha, a memória de Maria e o veneno. Mas, nem toda cicuta do mundo em uma taça de champanha pode matar a culpa.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Antes de Eva


Deu-se conta do nome que havia escrito no espelho. Em vermelho. O nome. Só então percebeu o que sempre escrevera em cartões, agendas e bilhetinhos afetuosos.
Desde muito nova sentia o fogo arder-lhe entre as pernas. Nunca permitiu que qualquer homem ficasse sobre seu corpo: Possuía-os . deixou-se virgem até os treze, não mais que isto. Encantava-lhe o cheiro do prazer masculino: rondava os banheiros dos adolescentes, aproximava-se dos velhos que saiam dos cinemas de pornografia e pressentia neles o cheiro do esperma emporcalhando as roupas íntimas.
Achou um Adão e deu-se a ele em um paraíso onde era a primeira das mulheres. Este não era Adão, era apenas mais um dos já tantos. O único erro dele era querer cobri-la como um reprodutor faz com sua égua premiada: jamais (nem no abandono das sedas branca- vermelhas de dor e prazer nesta hora), jamais deixou um homem pôr-se por cima. Desde muito nova sentia o fogo, maior este calor que o do inferno, arde-lhe entre as pernas. Este era seu pecado. E o corpo que ali estava não era o de Adão, por quem seu corpo ardia e para quem se entregava sempre, mesmo que a ele, de fato, se entregou apenas uma única dolorosa e prazerosa vez.
Deu-se conta do nome que havia escrito no espelho. O significado de sempre, o significado renovado. Só então percebia...
Homem algum a fez submissa, homem algum a faria... o batom ainda exalava um cheiro adocicado em sua vermelhidão definia o futuro daquela mulher: Lili T. H.. Tavares Honesto. Lili T. H.. Nunca se poriam por cima... O tapa, a mãe caída, o pai louco penetrando o corpo da mãe ali diante da filha...ele por cima sempre... bateu, mandou, gritou, matou... não com ela, eles nunca ficariam por cima.
O corpo na cama. Ele era forte, subjugou-a . Um pedaço de espelho, as sedas vermelhas (saudade das sedas brancas nunca houve), a carne masculina rasgada... não poderia ser mulher agora que fora dominada. Rasgou-lhe a carne e gostou do sabor que a morte exalava. Banho. O corpo. O que sobrava do espelho... escreveu:
A dor ainda vive
Porque é dela que o prazer emana
E é para ela que volta:
Sou minha morte e meu prazer,
Sou minha mulher, sou meu desejo.
Lili T H
Preferiu não morrer. Os homens lhe eram inferiores.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007


Eternidade e desconcerto
fluem pela pena
e a pena não é minha:
é repetição do já dito,
mais nada.
As margens do Sena
nunca visto,
as margens do Tejo
sempre adiado,
as margens do São Francisco
visitado nos livros,
as três margens da pena
que não é minha.
A minha pena
só rabisca duas ou três palavras,
só as que me formigam,
mais nada.
Os mitos e os amores
(de reis, soldados ou outros
que valham mais que um sopro)
deslizam pela pena alheia
sem escapar-me aos olhos uma só palavra .
e minha pena,
esferográfica e repulsiva metáfora,
nada me dá que não seja
um rabisco por cima das palavras.
A pena, tinta sobre o papel
(inútil e invalidada)
não é mais que minha vida:
sombra dos outros,mais nada

domingo, 25 de novembro de 2007

Da morte de Deus e outros desencantos


Cartografia do nada,
Mapa do etéreo e volátil,
Não há orientação para meu vazio,
Não há norte na minha religião.
Utopia de deuses e demônios,
Mostras de cada memória
E de duas desmemórias:
Viajo por estes caminhos inexistentes,
Ando por estes descaminhos que construí.
Quanto de vazio tenho!
Quantos descampados carrego!
Quantos desertos me fiz!
A vontade do que não sou
É o que me resta,
A saudade daquilo em que acreditei
Me dói.
Entre os mapas do nada
E a cartografia do volátil,
Me sobra o remorso
De ter matado Deus
E não ter, ao menos, Um Diabo para pôr no lugar.

sábado, 24 de novembro de 2007

Relicário vazio


Nada além da janela de seu quarto lhe era dado conhecer. Desde sempre fora assim. A doença resolveu morar nela tão logo a luz encheu seus olhos. Luz. A pouca luz que chegava ao claustro nem de longe tinha a intensidade daquela primeira, tênue lembrança.
Os seguidos frascos de soro. O braço sem espaço para novas invasões de agulhas. Morria todo dia. Morrera ao nascer. Sua morte nasceu com ela, posso dizer. Eram gêmeas. O ar de seu quarto era sempre o mesmo. A luz de seu quarto era sempre a mesma fria luz.
Não havia diferença entre noite e dia. “separe-se a noite do dia”, gritava biblicamente. Nem noite, nem dia. As horas lentas, os dias mais lentos. Os dias lentos, os meses mais lentos. Anos assomavam-se. Arrastava-se o tempo como bem queria naquele quarto. Não havia diferença. Não fazia falta o tempo ou a ausência dele.
Ainda pouco, nasceram pêlos vergonhosos. Doía-lhe o peito. Avolumaram-se os seios. Agora a voz do doutor a aquecia. Agora, as mãos do doutor eram mais quentes. As mãos do doutor, sua barba, o peso de seu corpo, o prazer. Acorda suada. Os sangues. A mãe explicou detalhadamente todo o processo de tornar-se mulher. A mãe ensinava tudo. Ler, escrever, pensar, ver horas. A mãe ensinava tudo.
As visitas do doutor são esperadas. As dores passaram, mas é bom que o doutor venha. Espera. Descobre as pernas brancas pela ausência de sol. As mãos quentes dele. Aguardará com ânsia o próximo exame. Vai sonhar-se em campos floridos sob o peso másculo do doutor. Vai sonhar-se arrancado com as mãos de prazer a grama onde deita, onde o doutor é só seu.
Acordada, olha a janela. Fronteira intransponível. Arranca o soro. Não se importa em estancar o sangue. Com dificuldade faz as pernas moverem-se. De uma vez, senta-se. Põe os pés no chão. Frio? Era o inédito chão sob seus pés. O chão sem ajuda da mãe, finalmente. Passo a passo. Lenta. A janela, fronteira intransponível. A dois passos da janela, sente-se tonta. Volta. Não! Ela quer o mundo, os campos floridos, as cidades imundas. Ela quer o mundo que por tanto tempo foi-lhe roubado. Gira a tranca. Empurra a janela. A vida invade seus pulmões e ofusca seus olhos. A vida finalmente nascia para ela.

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Das negativas


Tomei emprestado o título do último capítulo de Memórias Póstumas de Brás Cubas para iniciar meu trabalho neste blog não porque seja megalômano e sinta-me tão escritor quanto Machado de Assis, mas por entender que é muito difícil dizer o que farei das linhas a mim confiadas. Prefiro negar a afirmar e é isto que farei. Então, esta é a primeira e mais importante das negativas: não serei Machado de Assis. O que, parafraseando parcamente o autor defunto que criou o defunto autor, já é uma radical diferença entre o texto dele e este: a principal negativa aqui não é a derradeira.
Não serei o responsável por poer en caronica as estórias dos reis que em Itaboraí foran. Assim sendo, não estarei compromissado com verdades imutáveis de mesa bar, aquelas verdades que não se sustentam frente a um antiácido no dia seguinte, nem com as verdades puritanas e virgens, mutáveis antes do antiácido. Também não formularei verdades histórico-físico-químico-matemáticas da evolução do homem e de seu pensamento. Não há verdades, há discursos. Ou não.
Não buscarei penetrar surdamente o reino das palavras. Não irei a Pasárgada. Não, direi ao revisor, Este não é o sinal que procuras. Não saberei o que vale a pena, mesmo que o pão seja caro e a alma não seja pequena. Não espalharei cantando por toda parte impérios e fés. Engraçado. Fé, que também é uma negativa, não tem plural. É individual, egocêntrica, xenófoba e singularmente só.
Não misturarei tempos e tinos. Não formularei hipóteses com agravantes e atenuantes, a menos que não haja jeito. Não direi qual o limite da crônica e do conto. Não direi o que é crônica, nem o que é conto. Nem sei se poderia. Não haverá, portanto, teorias rebuscadas e não existirão teorias conspiratórias vermelhas, verdes, destras, sinistras ou ambidestras, fontes inesgotáveis de fingimentos, metáforas sociais e armadilhas comportamentais.
Não matarei, não roubarei, não cobiçarei. Não direi desta água não beberei. Não farei contas, não me preocuparei com a força da gravidade ou com outras fantasias da ciência fria, exata e, quase sempre, inútil, e narcisista, e aprisionada nos livros didáticos poeirentos ou na insistência de um professor que vê o mundo a partir de seu umbigo e esquece seu aluno dentro do livro empoeirado a que me referi. Não tratarei alunos e amigos como números coisificados e irritantemente previsíveis como todas as coisas exatas e previsíveis, um mais um dois sempre. Não atentarei contra a castidade, não farei penitência, não perderei o senso do ridículo. Não negarei as suposições, não desdirei as idéias preliminares.
Certo fica que todas as negativas não constituem uma profissão de fé e mesmo elas podem ser negadas a qualquer momento em função de outras negativas que lhes sejam simétricas, paralelas ou transversais. Tomarei como verdade a afirmativa-negativa de Parmênides, “o ser é, o não ser não é”, até que alguém a negue convincentemente. Enfim, não hesitarei em negar, mesmo quando estiver afirmando.
E a última negativa nega as negativas de um defunto irônico. Um cadáver que, se não fosse ficcional, andaria entre tantos cadáveres ignorantes de sua própria condição de falecido, entre os defuntos do conformismo rançoso e do revolucionismo palavroso e hipócrita. A última negativa é uma afirmação que nega o óbvio nestes dias quatro graus mais quentes. Tive filho: transmitirei a uma outra criatura o legado de minha esperança.