domingo, 30 de dezembro de 2007

Quase uma fábula




“A história é uma seqüência de mentiras sobre as quais estamos todos de acordo.” Napoleão Bonaporte


“De tanto se repetir uma mentira, ela acaba se transformando em verdade.” Joseph Goebbels, chefe da propaganda nazista


Era uma vez uma enorme e esperta águia careca. Tal bicho era forte, falante e fazia muito menos do que falava. Mas, todos os outros animais tinham medo da águia careca porque o que ela falava parecia verdade.
-Não adianta fugir! A vida vai acabar! O tubarão não presta porque aliena o trabalho das rêmoras. O macaco tá certo! Urubu é um bicho feio! As fêmeas não sabem de nada e são fracas! - Dizia a águia careca a toda hora. E alguns bichos até tinham problemas de saúde porque acreditavam no que a águia careca falava.
Era uma vez também um pequeno ratinho que nada podia sozinho. Como gostava muito de falar e de ouvir, começou a reunir à sua volta outros roedores. E, naquele grupo, todos podiam falar e ouvir, independentemente se sábio ou tolo, macho ou fêmea, poderoso ou fraco, pobre ou rico. E os roedores seguiam o pequeno ratinho porque queriam, porque gostavam.
Um dia, vendo que o pequeno ratinho ia à frente de um grupo enorme de roedores, resolveu, para não perder seu poder, matá-lo. A águia careca atirou-se sobre o ratinho e, antes de devorá-lo, disse:
-Você vai morrer porque não sabe se comportar como líder. Você acha que as fêmeas têm valor, que os seguidores são mais importantes que o líder. Olhe para mim que estou há mais tempo na vida, até sou careca... Diga uma coisa e faça outra. Olhe para mim que sou o maior símbolo do capitalismo, que sou símbolo da maior nação da Terra, que destruo quem me contradiz. Olhe para mim que sou poderoso e que obrigo todos a fazerem o que quero sempre. Você não sabe se comportar como líder, não é um dos nossos. E agora? O que vai fazer? Vou matar você!
-Você está certa, grande e poderosa águia careca. Quando eu morrer todos aqueles outros roedores continuaram caminhando e pensando porque acreditam que podem e podem acreditar nisso. Mas, quando você for só sombra, e, acredite, isso vai acontecer, quem vai assumir seu lugar? Você tem filhos? Você tem amigos? Você tem alguém que lhe seja igual?
A águia careca matou o ratinho, mas, como todos sabem, ela é uma espécie em extinção. E, ainda que viva muito tempo, uma hora a águia careca vai morrer e o ratinho continuará no pensamento e na liberdade daquele grupo de roedores.
MORAL DA HISTÓRIA: Pensar ofende o poder, ter razão ofende ainda mais. Entretanto, é preciso continuar pensando.




A todos os que preferem o ratinho, bom 2008 e felicidades para toda a vida.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

As Trombetas


A Primeira Trombeta

Amazônia.
Estufa.
Fogo!
Fogo!
Fogo!
O fim do mundo
É culpa de Deus?


A Segunda Trombeta

O mar morreu.
O mar tremeu.
Era Natal.
Era Natal.
E a Tsunami veio.
E o mar morreu.
E o mar tremeu.

A Terceira Trombeta.

Águas amargas,
Corações amargos,
Deus amargo.
Ainda bem que
Não tomo água,
Não tenho coração
E não acredito em Deus.


A quarta trombeta

A águia sou eu?
O sol sou eu?
A lua sou eu?
Não!
Sou vítima da fúria
Dos estéreis, carecas e barbudos
Que se acham deuses
E me condenam
Porque não sou
Águia
Sol
Ou lua.
Me condenam porque não sou
Outra coisa que não eu.


A Quinta Trombeta

Culpa é fardo que não carrego.
Culpa é gafanhoto
Nuvem de gafanhotos
No céu da alma
Culpa é fardo cristão
Que não
Carrego
É nuvem de gafanhotos
No coração do homem
Condenado por Deus.


A Sexta Trombeta

O anjo toca a trombeta
E a terra treme.
O anjo toca a trombeta
E a morte chega.
O anjo toca a trombeta
E Deus mata.
Anjos assassinos.
Assim diz teu Deu.
Assim deve ser.
Os homens morrerão
E os anjos serão assassinos.

A Sétima Trombeta

Onde está o reino?
Em uma biblioteca.
O que é o reino?
É o que penso ser.
Quando virá?
Nunca ou sempre.
As trombeta assassinas
Tocaram e mataram,
Tocaram e mancharam,
Tocaram e murcharam.
Eu li e nada vi.
A palavra era fugidia,
Mas a mão de Deus estava suja de sangue.

Selos


O Quarto Selo

Vem!
A ti meu inferno e minha espada.
Sou a Morte e minha espada
Rompe ossos,
E meu cavalo amarelo
Pisa a quarta parte da terra.
Sou a Morte e nada além
De mim existe;
Sou Morte, Fome e Espada.

O Quinto Selo

A Palavra me matou
E por ela vivi injustamente.
A Palavra era ouvida só por mim.
De que me vale roupa branca se meu sangue
Mancha tudo o que é alvo?
A palavra me condenou
E ainda vago pela morte
Porque
É a Palavra que manchará de sangue meus irmãos e irmãs
É ela que me condena, ainda eu morto
A morrer todos os dias.


O Sexto Selo

Lua vermelha,
Sol negro,
Estrelas que despencam.
Tudo fora do lugar,
Todos sem seus lugares.
O Sexto Selo foi aberto
E o grande dia chegou:
Continuamos pobres,
Continuamos tristes,
Continuamos doentes,
Mas o Cordeiro vive e reina.

O Sétimo Selo

Xadrez.
Rei.
Torre e Bispo.
Cento e quarenta e quatro mil
Vivos.
Bergman.
Cristo.
O Selo.
E nós aqui,
Servos de Deus,
Mortos esperando
O que nunca virá
Porque não existe.

sábado, 22 de dezembro de 2007

O Terceiro Selo


Cevada por uma vida,
Azeite, vinho e sangue.
Costelas negras que se colam;
Trigo por dólares,
Estômagos dos mortos da América;
Cevada por uma vida
Não-homens, sombra de gente;
Não danifiques o azeite e o vinho...
Felicidade é uma máquina de algodão doce.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

O Segundo Selo


Das mães a dor,
Dos filhos o corpo,
Dos pais o ódio,
De todos a repulsa.
Espalho-me entre os dedos
Nas espaçadas humanidades
Refluxo de vermelha
Necessidade.
Angola, Beirute, Bagdá.
Vizinho, amor, você.
Há mais o que fazer,
Há mais que esperar
Ver caírem corpos,
Mas tudo está
No fim:
Escombros de alma,
De carne de vida,
Sob a máscara rubra da morte.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

O Primeiro Selo


Leva-me, glória nula,
Leva-me que nada mais sou
Que morto fingido,
Que choro aflito.
Sob o ouro
É humana a cabeça
E sob o tempo
Há um humano cheiro
De derrota

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

O cordeiro


Toma, terra, é meu corpo.
Comei!
Toma, terra, é meu sangue.
Bebei!
Os cordeiros espalhados
Oferecem o que nem têm
E os lobos agradecidos
Comem, babam e vomitam,
Nas valas, nas balas,
Nas casas, nas fossas,
Nas roças, nas poças,
Na guerra.

domingo, 16 de dezembro de 2007

A amizade entre Davi e Jonas


Beijo o dorso suado

e sinto agigantar-te

em mim.

Procuro-te ao espelho,

iguais e simétricos,

dorso suado

agiganta-te dentro de mim.

- O que desejares,

eu te farei.

o dorso suado,

iguais em espelhos,

desejei-te,

agigantou-te em mim.

Sob as gotas dde teu sangue,

de teu gozo, de teu suor

vi-me completo,

igual e simétrico,

vivo enfim.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Às musas


Dois versos de desespero,
um conto de terror...
o trabalho, a caneta...
suor e calor.
Nada me assusta
mais que o escuro
da página branca,
que a esterilidade da mão.
E são mais dois versos de amor
e um conto de solidão.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Filho da deusa


Tenho às costas o peso de meu pai
E arrasto pelas mãos o filho que não tenho.
Outras terras procuram meus olhos,
Outras terras ainda procuram meu amor.
Derrotado, curvado sob o peso de meu pai,
Caio sob o fardo,
Sob o fado.
“O calor dissipa-se de súbito
e a vida perde-se no ar”.
Sob o céu troiano a fugir de um cavalo,
Derrotado, olho as estrelas
E vejo, ao longe, Nova Ílion,
“per amica silentia lunae”.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Teoria da involução da espécie


Sempre fui pessimista em relação à humanidade. Via nos aniversários de um ano algo de fúnebre: fugia aquele pequeno das estatísticas ao não morrer antes do primeiro ano.
Acreditava ser o homem a involução de um animal. Na verdade, o macaco, ao meu ver, era só um elo de ligação entre o homem e suas protozoárias necessidades. Amebas com braços e pernas. Amebas que matam amebas.
Questionava cada faculdade humana e considerava o raciocínio a mais fraca delas. Eu odiava a humanidade e seus deuses.
Em um desses momentos de autodestruição filosófica, vi aproximar-se uma jovem tomando, com volúpia, um picolé de manga.bonita. poderia ser a redenção da humanidade. Não sei que instinto ou que hormônio me levou a dizer um oi. Quase um ganido, mas que foi respondido com uma dulcíssima voz e um amantíssimo sorriso. E um telefone anotado em um pequeno pedaço de papel.
O raciocínio é a mais fraca habilidade do homem. Enquanto Amanda esteve-me próxima, não consegui pensar. Agarrei-me ao pedaço de papel com a voracidade de um animal faminto. Agradeci a Deus a oportunidade. Lembrei que era ateu. Agradeci ao deus dos ateus, por via das dúvidas.
Liguei no dia seguinte. Marcamos um encontro. Perfumei-me. Mania besta essa de disfarçar o cheiro. Ou mais besta seria a mania de ter um feronômio sexual artificial enchendo-se de perfume? Perfumei-me.
Oi, Charles. Beijou-me a boca. Não houve conversa. O raciocínio é a mais fraca das faculdades humanas. Entramos em um desses motéis de oitava categoria e copulamos intensamente em um quarto cheirando a mofo.
Converti-me à religião de amar aquela mulher. Adorava Vênus, Afrodite ou qualquer outro deu que me permitisse amá-la. Cultuava o corpo de Amanda.
Passei a acreditar em tudo. Parei de trabalhar. Fui demitido. Por Amanda valia a pena. Comprei tudo que faltava ao meu mal cuidado apartamento de solteiro, cético e herege. Nada podia faltar para Amanda. E ela mudou-se para meu apartamento de fiel e crente.
E acabou o dinheiro. Amanda precisava de dinheiro e sexo para ser feliz. Vendi o carro, a casa em cabo frio, os dólares. Por obra divina, surgiu-me a oportunidade de continuar a manter a Catedral de Amanda. Levaria uma encomenda à Europa. No destino receberia a metade do valor e, no retorno, o restante.
Polícia. Abre a mala. Cocaína pura, chefe. Algema ele, Brás.
Esperei a visita de Amanda. Primeiro dia. Uma semana. Um mês. Julgamento. Três anos. Bom comportamento. Sem mágoas, voltei para casa. Veria o rosto de Amanda. Ela estava perdoada. A vergonha não poderia ser dela, mas minha.
Cheguei a casa. Ainda tinha as chaves. Entrei pé ante pé. Charles! Dor. Ver Amanda sendo possuída por um velho decrépito derrubou-me ao inferno. Sonhei com aquele corpo cada dia. Sobre ele um velho decrépito.
Queria o quê? Eu precisava de dinheiro e sexo. Ele me deu tudo.Saí. O raciocínio é a mais fraca habilidade do homem e a covardia a mais forte. Sentei-me no meio fio e comecei a orar pedindo ao deu dos ateus que me restituísse o que mais amava e perdera: o ódio pela humanidade.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Cavalheiro


A noite escura camufla a tempestade. Um raio de lua no fio da espada, um resto de vida na mão suada. Combatente, nas trevas, cabeça erguida e envergonhada , chora... triste homem forte.
Vida nunca teve que não fosse morte. Nunca teve outra sensação que não fosse dor, a sua ou a dos outros. A noite fica clara por segundos, iluminada por raios cortantes. As gotas lambem a armadura e as lágrimas banham a amargura. Já não havia sentido viver.
Sentiu não haver mais gente por baixo do seu elmo. Sempre tinha sido não mais que uma máquina de morte. Envergonhou-se... chorou. Luta agora com a sorte. Procura um inimigo que lhe dê a doce esperança da morte.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Agonizando


Durante toda vida
Procura-se a razão
Para viver.
Em vão!
Na morte
Descobre-se
Que não havia razão.
Em vão!

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Craque



Desde cedo aprendera que só havia uma amiga: a bola. Menor que os demais, era o último a ser escolhido nas pelada infantis. Por conta da sua habilidade, isso mudou na adolescência. Seu nome, anos depois, passou a ser aclamado por milhões de vozes.
Jogar futebol foi a única coisa que Doval fez a vida toda. Até seu nome veio do mundo futebolístico. Pai rubro-negro, filho com nome de ídolo. É a lógica.Dos campos de várzea à escolinha de um time pequeno. Do time pequeno a um time grande. Campeão brasileiro de juniores. Doval!Doval! Doval! A seleção sub-20, conquista natural. Campeão sul-americano, mundial, artilheiro. Doval! Doval! Doval!
Ao voltar da Europa, contrato com o Flamengo. Se o velho Didi, Deus o tenha, visse o filho com a camisa que venerava como se fosse o Santo Sudário, seus olhos inundariam-se. Mas, os olhos do velho Didi já não vêem há muito tempo. Foi em uma daquelas crises de paixão de sempre. O coração ameaça parar sempre que o Flamengo ganhava. Parava sempre que o Flamengo perdia. Flamengo campeão, coração descompassado. Campeão vencendo o Vasco, coração descompassado por dias. Doval não se recordava se o Flamengo vencera ou perdera. Lembrava-se apenas do amado pai vestido com seu sacrossanto manto, assim o dizia, morto, estirado na poltrona da sala.
Vestiu a camisa, posou para as fotos. Doval! Doval! Doval! A multidão cantou seu nome. A muito custo se convenceu de que era impossível ter ouvido a voz do velho Didi. Cerveja. Doval! Doval! Doval! Fotos. Pagode. Mais fotos autógrafos. – Atenção! O primeiro gol com esta camisa vou dedicar a meu falecido pai. Delírio geral. Puxou o coro: -Ô bacalhau! Pode esperar... outro delírio.
Treinou. Foi para a concentração. Fugiu da concentração. Mulheres. Cerveja. Voltou. Dormiu. Era o dia. Estádio cheio. Doval! Doval! Doval! Nunca vira o Maracanã tão cheio. Ouviu palavrões da torcida adversária melindrada com as provocações da semana anterior. Preleção. – Vamos lá! Doval! Doval! Doval! Jogo difícil. Adversário forte, sem poupar pontapés. Tentou se livrar da marcação. O jogo todo foi assim: doval encostava na bola e era derrubado.
Mas, há um Deus que rege o futebol e o outro que rege o mundo. Aquele gostava de Doval. A bola na entrada da área, o zagueiro caído inspirava dó. Mas, Doval não teve dó. Nos olhos do goleiro um medo maior que o da morte. Um chute forte no canto superior direito. Explosão. Gritos. Bandeiras. Muitos corações descompassados, outros tantos pardos. Correu para as câmeras, levantou a camisa do clube e mostrou a que homenageava o pai. Doval! Doval! Doval! Fim do jogo. Vitória. Vitórias durante todo o campeonato. Título. Seleção. Dinheiro. Europa.
Na Copa do Mundo, a seleção jogou bem a primeira fase, venceu os ingleses nas oitavas, humilhou os franceses nas quartas, mas sofreu para vencer os nigerianos na semifinal. A dois minutos do fim, Doval marcou o gol salvador. Doval! Doval! Doval!
Hoje eu mereço uma cerveja gelada e uma loira quente. Assim pensou e assim fez. Saiu pelo corredor de serviço do hotel. Cuidado. Não foi visto. Com ele, Edson, o lateral direito e parceiro inseparável. Duas loiras. Beberam, dançaram.
Ligou o carro e saiu devagar. O ar da noite o fez pensar que estava recuperado. Acelerou. Driblou o primeiro, driblou o segundo. O terceiro e o quarto de uma só vez. O quinto pegou em cheio. – Falta!, pedia quase chorando. Doval! Doval! Doval! Acordou. Viu Edson ensangüentado. As meninas estavam mortas. Tentou levantar. Doeu. Olhou para as pernas esmagadas, irreversivelmente esmagadas. Abriu bem os olhos, viu suas pernas dilaceradas e chorou a dor dos perdedores.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Ah! O Amor!



João amava Maria.
Maria amava João.
João há dois anos a traía,
Mas ela dizia que não.

E José amava Maria,
Mas Maria amava João.
João com José dormia,
Mas Maria dizia que não.

João amava José e Maria.
José amava Maria que amava João.
Então, João virou Maria
E José virou João.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Não muito augusto



A muito custo,
um poema.
Não muito augusto,
sem rima, só fonema.
A muito custo
à dura pena.

Não muito augusto,
sem valer a pena,
com muito custo,
sem tema.
Não muito augusto,
mas poema.

Sem busto,
sem rima interna,
não muito augusto,
sem cara ou perna,
não muito augusto,
sem rima interna,
não muito augusto,
mas poema.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Deus do Andaime


Everaldo via o mundo de cima para baixo. Do andaime, via a pequenez humana. Brincava de Deus. Olhava para baixo e pensava com seus botões velhos. Se quisesse, matava um. Se quisesse, salvava outro. Determinava, de seu olímpico andaime, os destinos dos transeuntes. Era Deus.
Era bonito. Irresistível, dir-se-ia. Aquelas donas, sabendo que ele, Everaldo da Rosa, podia vê-las despiam-se no desejo de pertencerem ao seu tão famoso harém. E Everaldo cobiçou e possuiu cada uma delas em sua pobre casa, no Morro do Cão.
Sempre acordava com a cabeça doendo. Lembrava-se da cachaça na birosca de seu Antônio e da boa trepada que imaginava dar com a dona daquele prédio no Bairro dos Ricos, solitário nas noites no Morro do Cão.
Cinco horas. Everaldo deu-se ao luxo de levantar mais tarde. A cabeça ainda doía. Fácil de curar: reza ante de sair e cachaça antes de pegar no trabalho.Aqui embaixo ele só mais um entre os tantos peões. Subiu em seu andaime olímpico. Virou Deus de novo.
Ela estava lá novamente. Nua. Sabia que Everaldo da Rosa podia vê-la. Ele passa do andaime para o prédio e vai em direção à dona (pernas grossas, seios firmes, linda demais). Beija-lhe. Cobre-lhe a boca, possui a fêmea. Era isso que ela queria. Ela gozou, contava mais tarde no bar de Antônio. Pediu para eu bater, me chamou de filho da puta e tomou um tapa na venta. E, quanto mais apanhava, mais gozava.
Sob os olhares dos amigos de copo, um misto de incredulidade e inveja. Tirou a camisa e mostrou as marcas de unhas por todo o corpo.
No dia seguinte, acordou de novo à cinco. Tô ficando mal acostumado. Pôs a roupa de trabalho nova na bolsa. Se a dona quisesse, teria mais.
Chegou à obra com ar de Deus que só tinha quando estava no andaime. Os colegas assustados. Bando de babacas.virou-se e viu o chefe. Everaldo, tem um pessoal aí querendo falar com você. Polícia. Você está preso!
Na delegacia, Everaldo contou toda a história do estupro seguido de homicídio, mas insistiu no fato de que a dona esperava-o. Naquela mesma noite, sentiu a dor que a dona sentira e foi ver o mundo de outro andaime. Comenta-se que virou Deus.

domingo, 2 de dezembro de 2007

Dezoito


Havia entre os lábios o sussurro,
Havia entre as bocas o não-beijo,
Mas não havia vida sem o sussurro
E o que faltava à vida era o beijo.

E os dezoito dias se cumpriram
E os dezoito desejos se envolveram
Havia mais que vida no sussurro
E a vida não era mais que o beijo.

E foi de outro e de um que se descobriam
Na chegada sem fim e repentina
As vozes de sempre encobriam o sussurro
Os toques antegozados dissolviam-se no beijo.

E tantos dezoitos se cumpriram
E tantos outros se profetizarão
Porque haverá o amor depois sussurro
E depois do corpo ainda haverá o beijo.

sábado, 1 de dezembro de 2007

À Artemis



Sob seu olhar de prata
Servo e cervo
Sou sua caça
Sonho sua luz
Sou mais que já fui

Mais que Órion sangrando
Mais que Apolo enciumado
Sou seu, Deusa
Cervo de apoio
Servo de pouco

Sou seu quando
Quer ser caça
E me permites tê-la
Sob o jugo do meu corpo
Sou seu, Deusa
Quando se disfarça
E caça-me
E veste-se e despe-se...

Sôfrego
Seu
E meu sêmen
A escorrer-lhe o corpo
Sua caça feliz
Por morrer a morte justa
Ilibada e pura
Oferenda
À Deusa que me caça
E que se entrega.

Caio entre seus dentes
Vencido
Suado
Servo
Seu
Assim, Deusa
Seu