quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Cotidiano



O cheiro morno do café invadiu-lhe as narinas. Que saudade do mundo! Deitara para tirar seu cochilo e dormira 29 dias. Estranho, mas sabia quantos dias tinha dormido. Não foi fácil levantar a cabeça. As nuvens do sono ainda pairavam sobre ela e o mundo parecia embaçado. Mas, animado pelo cheiro pesado e vivo do café, levantou-se.
A família, incrédula, boqueabriu-se. Já a esposa contava o pouco dinheiro que tinha para o funeral. Ele sentou-se como há vinte e nove dias. Os filhos, o neto, a mulher ainda sem dizer palavra, pelo menos nada em nosso idioma ou em qualquer outro conhecido. A torrada foi besuntada com a manteiga. O café adoçado. Comeu pacientemente. Até que o filho disse “bom dia, papai”, “bom dia, meu filho”. Mais silêncio.
Foi ao banheiro para fazer a barba. A lâmina estava cega. Descartou-a. Pôs uma nova no lugar. Metodicamente, eliminou os pêlos já bastante grandes. Usou um gel ao terminar. Não se deu conta dos olhares pelo espelho. Não via os olhos de interrogação do neto, nem o de decepção do filho mais novo. Estava sendo o que sempre fora, não havia novidade naquilo. Mas, os olhares continuavam seguindo-o pela casa.
Deu comida ao cachorro, lavou o quintal, leu as correspondências. Conferiu as contas, reclamou do salário. Tomou banho, vestiu a camisa de seu clube, viu o jogo, torceu, gritou. Foi ao quarto, deitou-se. Aos poucos, foi sumindo, ficando etéreo, diáfano. Os olhares de lança ainda lá e lá ficaram até que nada mais pôde ser visto. Ele estava sendo o que sempre fora. E a paz voltou ao seio da família.

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