quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Dias de carne


Culpa. É isto o que sente. Ao sorver, gole a gole, a última taça do seu champanha tem os olhos, arrependidos e saudosos, nos dias de carne. Agora não. Agora só o maldito champanha é carne, só ele queima-lhe o estômago. O champanha e ela, viva cada dia, revivida cada hora a queimar por dentro o que sobrava de um homem. O resto era espírito, Padre Nosso e Ave Maria, Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, como era no princípio, agora e sempre, amém.
Maria. Maria de rosto angélico, carne tenra e corpo de inferno. A ele entregou-se Maria, volúpia e dor. Manchou o lençol do leito conjugal com o sangue de Maria. Culpa. É isto que sente. Mas, agora, não é mais carne.
E Maria concebeu. Anunciou: “eis que carrego no ventre teu filho”. Maria nunca disse ventre, diria bucho. Mas, concebeu. E concebeu por tê-lo seduzido, por tê-lo obrigado a pecar. Veio Gabriel e foi-se Rute. Rute, na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, na riqueza e na pobreza, odeia-o. Culpa. É isto o que sente. Não agora que espera o Reino. Agora, não é mais carne, salvo o champanha que lhe incomoda as úlceras.
Outro gole. Não. Não, ela não pode... pega o terço. Larga o terço. Liga o aparelho, põe o disco, seleciona a música: “Fim da estrada”, Madredeus. É ela. Viva. Gabriel virou anjo aos oito meses. Desespero de mãe, Maria xinga, blasfema, volt ao leito que violara, grita, copula. Culpa. É isto o que sente. E... só.
Lamenta. Vai ao quarto. Beija o corpo de Maria, arranca-lhe a roupa, assume sua posição de macho. Crava as unhas no pescoço da mulher, impede-a de respirar. Não pára de ser macho. Urra, cão no cio, enquanto ela se deixa de se movimentar. Dorme ao lado do corpo, sem culpa. Mas, isto foi no tempo de carne... hoje é espírito, Padre nosso e Ave Maria, Glória ao Pai, ao Filho e Ao Espírito Santo, como era no princípio, agora e sempre, amém. É espírito, salvo o champanha, a memória de Maria e o veneno. Mas, nem toda cicuta do mundo em uma taça de champanha pode matar a culpa.

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