sábado, 24 de novembro de 2007

Relicário vazio


Nada além da janela de seu quarto lhe era dado conhecer. Desde sempre fora assim. A doença resolveu morar nela tão logo a luz encheu seus olhos. Luz. A pouca luz que chegava ao claustro nem de longe tinha a intensidade daquela primeira, tênue lembrança.
Os seguidos frascos de soro. O braço sem espaço para novas invasões de agulhas. Morria todo dia. Morrera ao nascer. Sua morte nasceu com ela, posso dizer. Eram gêmeas. O ar de seu quarto era sempre o mesmo. A luz de seu quarto era sempre a mesma fria luz.
Não havia diferença entre noite e dia. “separe-se a noite do dia”, gritava biblicamente. Nem noite, nem dia. As horas lentas, os dias mais lentos. Os dias lentos, os meses mais lentos. Anos assomavam-se. Arrastava-se o tempo como bem queria naquele quarto. Não havia diferença. Não fazia falta o tempo ou a ausência dele.
Ainda pouco, nasceram pêlos vergonhosos. Doía-lhe o peito. Avolumaram-se os seios. Agora a voz do doutor a aquecia. Agora, as mãos do doutor eram mais quentes. As mãos do doutor, sua barba, o peso de seu corpo, o prazer. Acorda suada. Os sangues. A mãe explicou detalhadamente todo o processo de tornar-se mulher. A mãe ensinava tudo. Ler, escrever, pensar, ver horas. A mãe ensinava tudo.
As visitas do doutor são esperadas. As dores passaram, mas é bom que o doutor venha. Espera. Descobre as pernas brancas pela ausência de sol. As mãos quentes dele. Aguardará com ânsia o próximo exame. Vai sonhar-se em campos floridos sob o peso másculo do doutor. Vai sonhar-se arrancado com as mãos de prazer a grama onde deita, onde o doutor é só seu.
Acordada, olha a janela. Fronteira intransponível. Arranca o soro. Não se importa em estancar o sangue. Com dificuldade faz as pernas moverem-se. De uma vez, senta-se. Põe os pés no chão. Frio? Era o inédito chão sob seus pés. O chão sem ajuda da mãe, finalmente. Passo a passo. Lenta. A janela, fronteira intransponível. A dois passos da janela, sente-se tonta. Volta. Não! Ela quer o mundo, os campos floridos, as cidades imundas. Ela quer o mundo que por tanto tempo foi-lhe roubado. Gira a tranca. Empurra a janela. A vida invade seus pulmões e ofusca seus olhos. A vida finalmente nascia para ela.

4 comentários:

Fernando Munhoz disse...

Bem, eu não tive aula com você, exceto por um mês no qual você me vendeu aula no pré. Então não dá pra dizer que lhe conheço, que você é a pessoa mais especial do mundo como 99,9% dos alunos que te conhecem fazem. Mas mesmo assim eu queria comentar sobre o blog, porque ficar falando de homem é horrível, prefiro apenas comentar o texto. :P~

Só a imagem de Botticelli já seria suficiente pra engrandecer o texto, mas a narrativa conseguiu me prender, não sei o porquê. Eu não costumo gostar de contos assim, digamos, mais femininos. (rsrs), mas admito que fiquei muito surpreso ao ver-me lendo e relendo pra entender e esmiuçar todas as possibilidades de interpretação em cada frase.
Eu gostei muito e espero que você em breve coloque outros de seus textos para que todos possam se divertir (ou não) com eles.

Um abraço e saudações rubro-negras =)

Nilson Tacito Silva Martins disse...

"bom mt bom !!!"
serio...
nao me lembro de ter lido algo escrio por vc antes...
e ...
gostei...
serio...
meio descrito...
td mundo q eh phd eh...
meio dark? vc lia gibi do frank miller? hehe
heheh , falando serio..
tah mt bom...

Unknown disse...

Parabéns!!!
Simplesmente maravilhoso!!!
Espero poder ler outros textos de sua autoria.
Você é realmente "BOM" no que faz.

Anônimo disse...

Tá tudo lindo demais, espero poder ter o prazer de sempre "te ler" rsrsrsrs
Um grande beijo pra vocês três!
Mariana dos Santos Souza