quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Craque



Desde cedo aprendera que só havia uma amiga: a bola. Menor que os demais, era o último a ser escolhido nas pelada infantis. Por conta da sua habilidade, isso mudou na adolescência. Seu nome, anos depois, passou a ser aclamado por milhões de vozes.
Jogar futebol foi a única coisa que Doval fez a vida toda. Até seu nome veio do mundo futebolístico. Pai rubro-negro, filho com nome de ídolo. É a lógica.Dos campos de várzea à escolinha de um time pequeno. Do time pequeno a um time grande. Campeão brasileiro de juniores. Doval!Doval! Doval! A seleção sub-20, conquista natural. Campeão sul-americano, mundial, artilheiro. Doval! Doval! Doval!
Ao voltar da Europa, contrato com o Flamengo. Se o velho Didi, Deus o tenha, visse o filho com a camisa que venerava como se fosse o Santo Sudário, seus olhos inundariam-se. Mas, os olhos do velho Didi já não vêem há muito tempo. Foi em uma daquelas crises de paixão de sempre. O coração ameaça parar sempre que o Flamengo ganhava. Parava sempre que o Flamengo perdia. Flamengo campeão, coração descompassado. Campeão vencendo o Vasco, coração descompassado por dias. Doval não se recordava se o Flamengo vencera ou perdera. Lembrava-se apenas do amado pai vestido com seu sacrossanto manto, assim o dizia, morto, estirado na poltrona da sala.
Vestiu a camisa, posou para as fotos. Doval! Doval! Doval! A multidão cantou seu nome. A muito custo se convenceu de que era impossível ter ouvido a voz do velho Didi. Cerveja. Doval! Doval! Doval! Fotos. Pagode. Mais fotos autógrafos. – Atenção! O primeiro gol com esta camisa vou dedicar a meu falecido pai. Delírio geral. Puxou o coro: -Ô bacalhau! Pode esperar... outro delírio.
Treinou. Foi para a concentração. Fugiu da concentração. Mulheres. Cerveja. Voltou. Dormiu. Era o dia. Estádio cheio. Doval! Doval! Doval! Nunca vira o Maracanã tão cheio. Ouviu palavrões da torcida adversária melindrada com as provocações da semana anterior. Preleção. – Vamos lá! Doval! Doval! Doval! Jogo difícil. Adversário forte, sem poupar pontapés. Tentou se livrar da marcação. O jogo todo foi assim: doval encostava na bola e era derrubado.
Mas, há um Deus que rege o futebol e o outro que rege o mundo. Aquele gostava de Doval. A bola na entrada da área, o zagueiro caído inspirava dó. Mas, Doval não teve dó. Nos olhos do goleiro um medo maior que o da morte. Um chute forte no canto superior direito. Explosão. Gritos. Bandeiras. Muitos corações descompassados, outros tantos pardos. Correu para as câmeras, levantou a camisa do clube e mostrou a que homenageava o pai. Doval! Doval! Doval! Fim do jogo. Vitória. Vitórias durante todo o campeonato. Título. Seleção. Dinheiro. Europa.
Na Copa do Mundo, a seleção jogou bem a primeira fase, venceu os ingleses nas oitavas, humilhou os franceses nas quartas, mas sofreu para vencer os nigerianos na semifinal. A dois minutos do fim, Doval marcou o gol salvador. Doval! Doval! Doval!
Hoje eu mereço uma cerveja gelada e uma loira quente. Assim pensou e assim fez. Saiu pelo corredor de serviço do hotel. Cuidado. Não foi visto. Com ele, Edson, o lateral direito e parceiro inseparável. Duas loiras. Beberam, dançaram.
Ligou o carro e saiu devagar. O ar da noite o fez pensar que estava recuperado. Acelerou. Driblou o primeiro, driblou o segundo. O terceiro e o quarto de uma só vez. O quinto pegou em cheio. – Falta!, pedia quase chorando. Doval! Doval! Doval! Acordou. Viu Edson ensangüentado. As meninas estavam mortas. Tentou levantar. Doeu. Olhou para as pernas esmagadas, irreversivelmente esmagadas. Abriu bem os olhos, viu suas pernas dilaceradas e chorou a dor dos perdedores.

Um comentário:

Unknown disse...

Sossa Alex,foi triste essa hein...
Puxa vida,o Doval tava se dando bem!
hehe

Sou leitor assíduo do blog,gosto dos seus textos,professor.
abraço